Antes de ir ter consigo, esqueci-me dos óculos em cima da velha cómoda de minha avó. Deixei-os por lá porque hoje não queria ver o mundo… Não consigo ler-lhe a alma nem os seus desejos, sem eles. Penso que fiz bem abandoná-los para não ver mais para este mundo cruel. Não quero fitar, enquanto desço a Baixa para a abraçar, os mendigos que nos olham como cachorros maltratados, as alcoviteiras que me espreitam do 2º andar (acho que elas procuram por si), o maldito relojoeiro que ainda não me devolveu aquele cronómetro que a menina me ofereceu, os fumadores compulsivos, o velho que escarra no chão desafiando a morte, os miúdos que correm para o quiosque pra comprar cromos, a viúva que chora por um olho e mira-me pelo outro, os taberneiros, nem a dona da editora, nem o homem da tipografia… Hoje não quero dizer-lhe mais. Apenas continuar o meu caminho até si sem os amaldiçoados óculos…