Novela, jantar e cigarro

Chamo-te mas continuas, lá fora, a admirar o mundo de forma perpotente com o teu cigarro na boca. Do velho varandim observas a serra e o mar, o silêncio e os ruidos sonoros que nos acordavam todas as noites, a vida e a morte. Espero por ti e volto-te a chamar, enquanto permaneço sentada no sofá a ver a novela, com todos os seus dramas e traições ficcionadas. Insisto e não vens, permaneces aí a controlar tudo o que (não) se passa e te é completamente alheio. Subitamente, o vento desperta e faz sentir-se no varandim tentando limpar o que estivesse a mais, ou não fosse o primeiro dia de Outono. Folhas secas numa frenética correria em direcção nenhuma, deixo de sentir o cheiro a cigarro mas não quero saber pois pode ser da telenovela e não estou com vontade para as tuas nostalgias, para os teus lamúrios e amores do passado; já me chega a telenovela para verter lágrimas suficientes. Guarda os teus dramas para ti, as tuas intensas paixões que (ao que parece) ainda mexem contigo, com as mullheres a quem teimaste dar mais vida e à vida a quem teimaste dar mais mulheres, hoje não estou para ti; deixa-me ver a novela já que não me respondes.Uma última rajada e decides fechar a janela, vens para dentro mas por pouco tempo até conseguires agarrar nas chaves e dizeres-me com aquele teu tom de voz melancólico:


- Vou lá abaixo e já volto

A verdade é que eu nunca percebi onde se situava o “lá abaixo”; desconhecia essa posição no meu mapa mas, não me interessava pois eu sabia que voltavas sempre a casa. Acredito que te tenhas supreendido com a vista diferente do habitual; não fosse o mundo visto de outro plano. A telenovela já acabou e é tempo de limpar as lágrimas. Certo é que é o jantar está na mesa e à três dias que ainda não voltaste. Queres que volte a aquecer a comida?