Carta de Bill Stein Husenbar

Querida

Sei que esta carta não chegará a ti em qualquer momento das nossas vidas, mas escrevo para desabafar. Irei trocar contigo palavras desertas, tal como tu fizeste quando eu era teu. Palavras que se deixavam perder num caminho tão estranho e infinito, como nosso amor. A memória trai-me de vez em quando, confesso-te sinceramente. Deixa-se, facilmente, entristecer e chorar por ti num tom histérico e silencioso. Pasmos da alma da infância composta e do berço de ouro. Sei que não tenha cravado meu brasão em teu coração mas alguma marca terá ficado? Um gesto, um olhar, um beijo? Sensações perdidas no tempo, lágrimas renascidas no presente. Não nego que me marcaste, isso é óbvio, mas não terá já passado um longo ensejo? A sabedoria afirma que “com o tempo tudo passa”. Assim sou levado a questionar os provérbios populares, a sua racionalidade e o seu povo. Pobres de espírito aqueles que acreditam na sabedoria popular. Não sabem o que dizem esses ignorantes! Quem é o louco que afirma veemente que o melhor remédio, para as feridas do passado, é o tempo? Irracionais iletrados. A verdade é que não esqueci… Por vezes penso que não passo de um louco fragmentado, que procura em cada um de nós um pouco de si. Quem sou eu? Sou aquele que nunca será aquilo que sempre quis ser. Este mistério intenso e profundo de nós dois… Recordo-me quando atravessavas, em passo regular, o velho e longo corredor. Subtilmente e inconscientemente, espalhavas a tua beleza nos teus passos melodiosos e suaves. Sei que alguém se perdeu por ti, tanto ou mais do que eu, e é só teu. Estranho…! Trátas-lo por “amor” e eu não tenho ciúmes. Teria se fosse um outro qualquer que não te quisesse. Temores de mim. Não compreendo. Parece tão lógico mas também tão irracional. Qual a alma inocente que é feliz no seu maior erro? Por dentro ainda sinto a minha voz a entoar o teu nome, Sophie. Quem ama deve ter ciúmes e eu não os tenho. Nem te tenho... Será por isso? Não os tenho porque não te possuo, logo não se pode sentir algo por aquilo que não possuímos. Limito-me a olhar para a tua felicidade então, sempre é melhor que nada. O futuro? Não sei, nunca soube… A previsão nunca foi o meu forte. O dia de amanhã compete a nós construí-lo e eu não sei que obra pretendo criar. Já quis o mundo, agora só desejo metade. Esta veia de ambição sempre me condenou à infelicidade. Mas porquê? O homem é o único ser capaz de destruir obstáculos e fronteiras para obter o que (nunca) sonhou. O segredo sempre foi querer e eu quero. Mas qual o caminho a traçar para alcançar esse objectivo? Tantas dúvida inquietantes que me consomem até à última gota de esperança. Mas sei que irei alcançar tudo o que sonhei e o que não sonhei. É uma questão de tempo e muito trabalho. É o momento para começar a formar o tal império que todos ambicionamos ter, em vida. Será isto uma mania de superioridade, querer ser mais que tudo e todos? Certas alturas, sinto que esta vontade súbita não passa de uma ilusão que me entretém, uma espécie de brincadeira para crianças. Deambulo por entre a nostalgia e o presente. Uma fórmula, no mínimo, explosiva. Não tenho dúvidas em dizer que sou obra de ti, do passado e dos erros. Todos eles conjugados e somados dão origem a uma pessoa bastante ambiciosa, sonhadora, solitária, calculista e arrogante. Tenho orgulho no que sou. Aliás, considero-me uma raridade já que a presença materna não existiu. Minha mãe, aquela que nunca conheceste, faleceu quando me deu à luz, digamos que deu-se ao trabalho de me lançar ao mundo e deixar-me só perante as cobras que surgem de cada esquina. Assunto encerrado. Meu pai, aquele que quase conheceste, sempre foi mais ausente que presente. De vez em quando lá aparecia, tentando mostrar preocupação. Coitado! A velhice encarregou-se de lhe condenar as aspirações. Muito misterioso, era como se fosse um narrador de uma história desconhecida da autoria de alguém. Recordo-me que apenas o conheci, mais aprofundadamente, na altura em que vim para Lisboa até a sua morte – entre 1944 a 1956. Aprendi mais qualquer coisa com ele mas nada de relevante. Antes de morrer telefonou a seus pais, dizendo-lhes que estava gravemente doente, para que viessem tomar conta de mim. Meu avô, tantas vezes que o viste mas não o conheceste, era mais do que um pai e minha avó, nunca a conheceste, era uma mãe. Lembro-me bem, em pequeno, que meu avô deixava-me e buscava-me à escola. Impossível esquecer aquela companhia. Nos seus olhos, sabia bem que era o menino dele. Era aquilo que o filho nunca foi. Além disso, fazia-me as vontades todas e ao mesmo tempo não me tornava um miúdo mimado como tantos que existem. Fazia-me crescer a cada segundo, mostrando-me que se queria alguma coisa devia faze-la sozinho. Minha avó era quem me mimava e me aconchegava todas as noites. Era a ela que mostrava as cartas infantis que escrevia, brincava a múltiplos jogos, jogava às cartas, etc. Obvio que tinham os seus defeitos, e que foram piorando com o avanço das idades, mas nada que me importasse. Ambos gostavam muito de meu pai, não imagino o que sentiram com a perda do filho. A minha avó materna, nunca te falei dela, também me criou na Áustria, quando meu pai se ausentava. Gostava muito dela. Era brincalhona e exigente. Deixei-a de ver quando vim para Portugal. Ao que parece ficou a morar com um senhor de quem se apaixonou. O tempo passou e tudo teve um fim. Os meus avôs envelheceram e morreram com a sensação de missão cumprida. De louvar, já que tiveram de criar um neto (quase filho) numa idade onde apenas se quer sopas e descanso. Lá fiquei só com a companhia de uma prima, nunca a conhecerás, minha chamada de Joanh. Um bom coração e muito brincalhona mas, muito ingénua para o que a vida lhe preparava. Com isto tudo, é normal lembrar-te. Pecado seria se tal não ocorresse. Como vês, o passado marcou-me e o futuro cabe-me construi-lo à minha imagem. Espero que possamos vir a ser companhia um do outro, o que penso que já acontece mas não tenho certezas. Um dia sorris-me, outro és fria, noutro estás carente e por fim nem para mim estás. Gostava tanto de saber o que fui e sou para ti. Uma espécie de confissão sincera antes de morrer e deixar a alma em lágrimas. Queria um último sorriso teu, um abraço e um beijo de despedia de quem parte do lado de cá para o lado de lá, do oculto e sombrio. Que viesses e me afagasses o cabelo numa prova de carinho eterno. Tenho dúvidas quanto ao que sinto por ti. Amei-te desesperadamente como se fosse uma obsessão de quem procura água num deserto abrasador. Hoje, amo-te de uma forma mais carinhosa, mais amiga, mais terna, mais compassiva… Não quero compromissos, quero-te como um ombro onde me posso confessar e chorar sabendo que terei sempre o teu apoio. Não aspiro entregar-me a ti de corpo e alma. Tal aconteceu e agora sabemos o resultado disso. Desejo-te como uma irmã, amiga eterna… Só isso. Repito que não sei o meu futuro mas peço-te que sejas feliz na tua vida e que sejas capaz de realizar todos os teus sonhos mais profundos. Que ames como nunca amas-te e que continues a impressionar o mundo, pisando-o com a tua beleza.

Até sempre
De quem te amou, ama e amará…
Bill Stein Husenbar