Conversas a três (II)

“ - Vou voar como o vento.”
Diz ele, que se debruça esperando escutar uma voz oriunda da madeira do balcão ou do interior dos copos vazios e
(“ -Terei eu me apaixonado por alguém que realmente não existe; que foi criada pela minha expectativa? A culpa não é tua… Ninguém é dono de tudo e de todos.”)
continua a reflectir, aparentemente, sobre nada. No consciente dele, ainda ecoa aquela frase dita por uma menina. Já não tem corpo nem espírito; foram retirados numa qualquer noite de lua cheia. Tiraram-lhe tudo e agora agarra-se à “alma”, aquela que mais de metade da população mundial não sabe o que significa, mais uma das muitas perguntas sem resposta…
Não sei se tive amor ou apego por ti mas, a verdade é que te de tanto te desejar, perdi-te para sempre e nada mais me resta. Aí estás tu, sem querer mostrar-me a cara. Reparei nos tons azuis que estão nos olhos e pergunto-me se usaste aquela cor que tanto amava… Se é a minha cor ou não, já não sei responder, quero acreditar que é meu. Apenas quero ” voar como o vento”,
(ainda te lembras quem disse isto?)
como aquela menina que era independente de tudo, de todos, do mundo. Saudade da infância perdida, onde as pinturas eram as mais puras e belas… Crescer fez-me ver um universo funcional a três dimensões, com pormenores assustadores e detalhes (excessivamente) duvidosos. Perguntara-te um dia, se a vida não se baseava num sentimento de inquietude com uma mistura de falsas expectativas e um trago de sonhos irrealizáveis.
(recordas-te?)
Não me lembro se chegaste a responder
(chegaste?)
porque os meus olhos à muito que já se tinham perdido nos contornos do teu cabelo loiro, as mãos afagando as linhas finas que te davam a mais bela das cores ao teu cabelo
(ou ainda eras morena?)
sedoso e macio. Tal como tu, em todas as tuas expressões mesmo nos momentos mais aflitivos eras branda e suave demais. As tuas mãos irradiavam tranquilidade em cada gesto que expelias do teu interior. Ouve as minhas preces e volta para mim, entrega-te novamente e deixa-te voar
(como a pequena menina)
nos meus braços até encontrares um caminho que te leve aos meus lábios embriagados e secos de ti.
Ali está ele, certamente a lamentar-se do pouco tempo que viveu com ela e de tanto que ficou por provar. Impávido e sereno, olha para os copos com se estivesse a estabelecer uma conversa telepática com o liquido já evaporado. Ela contempla qualquer coisa mas, sem nunca desviar a atenção do balcão. Não sei se ela tem prazer em apreciar aquele traste ou se está à espera de um sinal dele para avançar. Pintara-o um dia, com muita relutância dele, numa tela gigantesca onde talvez quisesse expressar o seu amor, por ele, num espaço tão amplo. Não seria demais? Pegara num fino pincel e começara a traçar-lhe as curvas do rosto impávido e (ainda) sensual. Lá fora, a noite e a lua cheia teimavam em espreitar pela janela a obra que ela estava a criar. Enquanto desenhara, dissera-lhe que “todas as críticas sobre uma obra de um artista são positivas, o pior é quando a obra não desperta sentimentos nas pessoas e as deixa na total indiferença”. Não sei se ele ouvira o que aquela mulher tão inteligente afirmara mas, a pintura lá continuou noite dentro até à última pincelada.
Onde é que estará aquele quadro que pintei? Aquele em que mostrei ao mundo como tu, verdadeiramente, eras? Aquela pintura que teimaste que não fosse concretizada? Tinhas vergonha de te revelar? Porquê? Dentro de ti, estava a pessoa mais bela, carinhosa e sensual que alguma vez me tocara… Nunca vira um pincel com tanta avidez de pintar o que quer que fosse,
(ou seria a minha mão?)
ele sentira-te e um enorme desejo despoletara-se para te gravar na tela como uma daquelas fotografias de alguém que amamos muito e anda sempre connosco. Tenho saudades de te pintar.