Conversas a três (III)

De pintar o teu rosto, o teu perfil, o perfume escondido nos olhares que lançavas sobre a paisagem da janela. Não percebi se olhavas para a lua ou para a viúva da luz acesa mas a verdade é que isso não me interessava, gostava de te ver assim, tão personalizado, tão austero e delicado ao mesmo tempo. Poderás voltar a ser o meu amante, o meu amor? Começarias tudo outra vez? Reacenderias a chama do teu peito? Colarias teu corpo ao meu? Voltarias a dançar no salão de prata, iluminado pela luz das velas, ao som do bolero tocado pela orquestra afinada? Ergue-te na madrugada e lança as tuas asas, cobrindo este corpo áspero da saudade, e voa com a eterna sonhadora. Por mais cores que junte não te sinto aqui…

Não me tragas o passado nem as lembranças, as expectativas defraudadas e o que ficou por concretizar. Não vivas só nesse teu mundo inconstante
(ainda mais do que o meu e com a ajuda destes copos)
e vem seguir o meu também. Quero partilhar o meu coração, aquele que foi teu, e que viveu dentro de ti por um instante. Adianta tentar esquecer-te? Não consigo, não quero, vive e renasce no meu interior com todos os teus pequeninos detalhes, recria-te e copia-te, lembra-te de mim. Fala-me palavras de amor como na nossa primeira noite ou então toca-me com as tuas mãos durante a noite envolvida no nosso silêncio. Ainda moras lá, com uma fotografia pregada à parede
(ao pé dos outros, esses!)
iluminando as paredes que ouvem o choro de um grande amor. Lembras-te de mim? Ainda sabes o meu nome? Ainda vivo em ti? Perdi o teu carinho num dos muitos baús lá de casa. Não sei onde o guardei, talvez se tenha dissipado no pó da noite sem luar. Ainda me vês? Alcanças-me? Desejas-me? Voltarás para casa, desencantada da vida e do sonho. E se tivesse alguém que me quisesse bem… Desisto desta busca? Ou espero pela Primavera por um sinal? Que jeito tão estúpido de ser. Tão vazia a alma, a voz. Agravo a minha culpa por te ter amado demais
(ou por ter ficado aquém disso?)
e não ter percebido que a nossa felicidade residia numa simples escolha que não fiz, que nem percebia que existia. E agora? Restam-me as palavras, aquelas que ficaram para depois, que foram esquecidas… Escapei com vida a esta tempestade
(mais valia ter morrido num gemido)
para viver uma enorme tortura indomesticável e consumidora das forças mais profundas e das tristezas. Declaro que antes de me deixar levar pelas ondas da bebida fui até ao mar conversar sobre tudo e nada, sobre a vida que agora eu sei e que jamais te encontrarei totalmente nas memórias. Foste mais que uma utopia, uma visão de um campónio viajante que se negava a dizer não. E agora que vamos beber? Ainda flutuas em mim e resta-me afogar-te numa morte rápida e sem amargura. Vou tentar, desta vez, não me atirar do barco e te salvar como um herói ou galanteador de mulheres. Foste, sem dúvida, o grande amor da minha vida…


E ali permaneceram os dois, a trocar inconfidências nos seus mutismos. Amam-se tanto ao chegarem ao ponto de sofrerem em comum. Sem glória, julgam-se suficientemente fortes para viverem um sem o outro mas esquecem-se que só se complementam quando se unem. Um dos dois perdeu-se na travessia do amor e o seu reencontro está cada vez mais longe…